sábado, 1 de outubro de 2011

Bojarda #1 de Pedro de Tróia


As tampas de esgoto e as suas propriedades.


O que seria de todos nós sem as tampas de esgoto? Melhor… o que seria de nós sem as propriedades dessas mesmas tampas? Resta, porém, discutir sobre o que seria das tampas de esgoto sem as suas propriedades.

Uma família que não tenha uma casa com piscina, uma quinta com cavalos, um monte alentejano, uma estância de esqui privada, um parque de diversões como Mr.Jackson, um farol numa falésia ou que não tenha simplesmente um tecto, um abrigo… estará distante da riqueza (de espírito) que permitirá ter uma vida da qual possa realmente desfrutar. Com isto arrisco dizer que se uma família sem propriedades dificilmente conhecerá o significado de “Já devias ter feito a tua mala ontem porque o teu Pai já está no carro a buzinar.” Vejamos, se não houver um lar não há malas para fazer. Haverá malas para carregar constantemente. Mas se não houver propriedades (atenção ao plural) não haverá necessidade de fazer malas, não haverá fotografias de família na casa dos antepassados, não haverá jovens a sentirem-se do “povo” apenas por estarem a pisar as uvas de nãos dadas à prima dos caseiros na sua própria propriedade, não haverá relatos emocionantes de histórias vividas na casa da árvore, e por aí fora. Lá está, se não houver propriedades dificilmente acontecerá isto: “Ah… que pena… é que este fim-de-semana viemos para fora. Estamos no monte porque o poldro deve nascer amanhã. Está tudo numa grande agitação!”

E agora debrucemo-nos na problemática “Será civicamente justo colher tampas de esgoto sistematicamente com o intuito de ficar com as suas propriedades?”. Não merecerão, esses patifes, castigo?

Vamos fazer o paralelo destas duas realidades. Martim e Madalena (nomes fictícios para não soar a nenhuma classe social) tinha cinco filhos. Constança, Maria do Mar, Salvador Maria, Bernardo Maria e José Cid. Todas as noites, um a um, despediam-se do Pai antes de irem dormir. Um dia Salvador não apareceu e tiveram outro filho.

Pois é… uns entram e outros saem. É assim a vida. Ciclos e ciclos.

Salvador havia sido raptado por um grupo de lenhadores e queriam apoderar-se de uma das propriedades de seu pai, Martim. Uma propriedade com um incrível pinhal e uma dezena de cavalos selvagens. Mas, nesse mesmo dia, Zé de Moure estava com fome e deu uma machadada na nuca de Salvador e assou-o.

Mas um agregado familiar que não possua propriedades é como o mel das abelhas com uma pitada de sal refinado e assim ficamos.

Ontem vi colher tampas de esgoto como quem pesca trutas num viveiro. As tampas eram como medalhas da cidade e sem as tampas a cidade ficou triste. Ficou sem cegos, sem idosos e sem miúdos rebeldes. Todos caíram nos buracos da cidade. Também houve quem destruísse viaturas, motoristas da carris a fazer manobras arriscadas e ratazanas a ver o Sol. Mas ontem o dia não foi só isso. Ontem acordei tarde e estive três horas indeciso se deveria ler um jornal ou ir falar com um malmequer que tenho na varanda. Não se passou rigorosamente mais nada durante essas três horas e acabaram por tocar à campainha. Abri a porta e era um mendigo. Convidei-o para entrar e me vir ajudar a fazer o jantar ou então que fosse para a sala ver uma série daquelas boas. Ele ficou três horas indeciso sempre a andar em círculos. Circulos como são as tampas de esgoto. Sempre às voltas e voltas e voltas com as mãos atrás das costas, muito pensativo no hall de entrada. Quando se ia pronunciar entrou uma amiga minha pela janela e gritou “Eureka”. Disse-lhe que fosse para a sala cozinhar, porque estava um mendigo na cozinha a falar com um malmequer enquanto eu ia para a varanda jogar à macaca com a minha prima.

Entretanto depois desta tarde muito divertida tinha um jantar marcado ao qual tinha de faltar. E faltei. Sentei-me num banco da Avenida da Liberdade enquanto pessoas morriam nos buracos da cidade e uma jovem deslumbrante aproximou-se, sorriu, sentou-se e disse “Olá”. Que lindo sorriso tinha a Teresinha. Mas a dada altura passam duas amigas e uma pergunta “Vânia, já não nos víamos há quanto tempo linda?”. Lindo era caírem elas também. A vida não faz sentido e Teresa Vânia Sousa Pereira Costa é o suficiente para eu me querer matar. Uma betinha deslumbrante de seu nome Teresinha Sousa Costa que afinal poderia ser a Vânia Pereira. Esclareçam-se convosco mesmo senhoras. Em frente ao espelho conversem e compreendam-se. Depois vistam-se, dispam-se, vistam-se, dispam-se e voltem-se a vestir e por fim maquilhem-se ou chorem.

A chorar estou eu não tarda… Mas há tantas mortes na cidade que choram as ruas com uma congestão. Buzinam-me e dou um salto para trás, tropeço e adormeço na calçada. Pronto. Acordei horas depois com sangue por todo o lado. Mas não era meu. Era expelido dos buracos da cidade que se assemelhava a uma lava. Uma lava nojenta.

Passaram-se uns meses e já leilões de tampas de esgoto há. Mas as suas propriedades, sim… as suas jamais serão leiloadas se não se desfizer delas. Altere o rumo da sua vida e compre muitas propriedades, seja muito feliz e depois faça um leilão. Se não o fizer, poderá um mendigo leiloar um malmequer e ganhar o céu.

Bojarda #1 de Abílio de Novais

Se as papaias soubessem a morango, o CD Sernancelhe teria barras de ouro em vez de sócios.

1967. Embrenhados numa qualquer selva angolana, sob o castigador calor da estação quente, os combatentes portugueses procuram saciar fome e sede de vários dias de privação.

Eu não sei como é que eles, na verdade, resolviam esse problema. Ok, não me dei ao trabalho de ir ler relatos – talvez seja uma forma mais verosímil de expor os factos. Sei, porém, de um fruto que, ali coabitando, o solucionaria com a eficácia de uma mina terrestre. Falo, como é óbvio, da papaia.

Uma sumarenta fruta proveniente, de facto, de regiões tropicais que, todavia, pode ser algo traiçoeira. Importa definir fronteiras entre a papaia, o mamão e a manga-papaia para não cair em erros de consequências drásticas. Todas provêm de árvores da família Carica, mas diferem entre si. A manga-papaia, como o próprio nome poderá indiciar, é mais aproximada de uma manga, já que tem apenas um caroço de respeitáveis dimensões no seu centro. O mamão e a papaia, por seu turno, contam com uma multiplicidade de sementes negras que são, aliás, uma imagem de marca e objecto de uma recorrente vontade minha que ainda não pude concretizar: usá-las para fazer café. O que permite discernir estes dois frutos é, então, o seu formato, sendo o mamão mais arredondado e a papaia mais oval e alongada.

Apresentações feitas, confusões prevenidas, podemos prosseguir. A papaia, apesar do seu aspecto laranja-vivo de embevecer, está longe de ser um sucesso de vendas em Portugal, no que às frutas concerne. Mesmo considerando a sazonalidade da papaia. Num lugar diametralmente oposto, está o morango. É, de igual modo, sazonal, mas vende que nem cerveja num festival de Verão. Ou em dia de jogo do Benfica. Mas o que tem o morango de tão especial? Porque é que até mandar alguém ir apanhar morangos soa mais natural do que mandar alguém ir colher papaias? Ambas as expressões me parecem delicadamente musicais.

É uma injustiça que almejo desmistificar, dissecar e escalpelizar através de um exercício muito simples. E se as papaias soubessem a morango?

Pois. O exercício não é tão simples quanto parece. Há muitas outras variáveis a considerar, tantas que mereceriam estudos de regressão linear múltipla com uma análise factorial em cima e ainda uma rotação dos factores a seguir. É como nos filmes de acção em que o durão é mesmo um profissional. Ele dispara contra algo inflamável, dispara contra o mau da fita e ainda vai lá disparar mais de perto para garantir que ele está bem morto. Não é como os durões que fazem tudo mal feito e depois têm que desancar mais no adversário para o despachar.

Uma coisa, porém, é verdade. Eu dissequei o problema. Só não estou a gravar, como os cientistas, porque tenho o cartão de memória da câmara de vídeo cheio com filmes caseiros que eu gostaria de manter para a posterioridade. O meu preferido é aquele em que faço de lenhador. Tive que me amanhar, senão, se houvesse incêndio, podia chegar o fogo à arrecadação e… Bem, não interessa. Isto para dizer que não estou a gravar um relato com todos os pormenores científicos, mas tenho vindo a dissecar papaias e morangos, em nome de um estudo completo e rigoroso. E também carnes várias. Para evitar que o meu paladar fique viciado e distorça o estudo. É a variável de controlo, de certo modo.

Mas voltemos, então, às outras variáveis. Uma que me parece relevante é logo o nome que deram aos frutos. O morango tem as letras de “amor”, enquanto a papaia tem as letras de “Papa”, o que, em algo que se come, pode ter impacto. Por isso, a papaia, como a Lyonce Viiktórya e pelos mesmos motivos, está condenada logo à nascença. E também desconfio que, por detrás do morango, está uma mente brilhante do marketing viral. Aposto que foi para aumentar a notoriedade do morango que se criou a associação do amor à imagem do coração vermelho, tão parecido com o morango… Eu não acredito em coincidências.

Por outro lado, o nome da papaia denota um tom algo autoritário. É desagradável e intimidatório. As pessoas não gostam que um estranho qualquer no supermercado se lhes dirija em modo imperativo. É o que faz este fruto, que parece vociferar aos consumidores: “Papai-a! Senão…”

Há ainda a questão da árvore. A árvore merece todo o respeito. Perguntem em Moure de Madalena. O morangueiro tem mais ar de arbusto, mas, ao que parece, até pode ser categorizado como árvore, também. Diga-se de passagem que o meu conceito pode estar algo distante do botânico. Árvore, para mim, designa uma coisa com um tronco castanho onde esquilos habitam e pica-paus… picam, uma porrada de ramos com folhas onde corujas fazem ninho e colibris pousam, com flores e frutos quando calha e raramente as vejo, mas acredito que tem raízes também. Todavia, segundo uma especialista botânica que eu fiz questão de consultar, a Wikipedia, o morangueiro pertence à mesma família de seres vivos que árvores tão maciças quanto a macieira ou o pessegueiro. Família que, por sua vez, pertence à divisão das angiospermas. Aqui, eu atalhei a conversa e vim-me embora porque achei que a Wikipedia se estava a fazer a mim. Não é que não me sinta lisonjeado, mas, aqui entre nós, ela é um bocado galdéria. Pelo menos tem a fama de que qualquer um pode ir lá mexer. Ainda assim, tenho a Wikipedia em boa conta e, se ela diz que o morangueiro é familiar da macieira e do pessegueiro, eu acredito sem questionar que javardices é que os antepassados deles andaram a fazer e, se tiver que o negar, negarei a negação em voz baixa como fez Galileu. Não será com a frase “Porém, ela move-se”, mas será com outra igualmente simples e cativante. Como “Porém, todas são Rosaceae”.

Acerca, portanto, da árvore, a papaia também está em apuros. Ela provém da papaeira, que me remete logo para essa peculiar doença da papeira. Peculiar porque parece um duplo queixo, resultante de algo tão humano quanto enfardar à bruta. Ou seja, ninguém diria que é um vírus e, pior, um vírus que pode causar maleitas testiculares. Lembram-se da especialista botânica? Funny story. Vai-se a ver e ela também percebe de Medicina. Foi ela que me contou e explicou ainda que essas complicações no andar de baixo não são sintomas particularmente comuns. O que me leva a pensar que se trata daquelas pessoas cujo queixo, com um pouco mais de pele, seria um escroto. É a única ligação lógica que consigo estabelecer com a papeira.

Eu não sei se mais alguém vê a coisa da mesma maneira que eu, mas sempre que vejo uma pessoa com papeira, imagino um líquido verde viscoso dentro daquela bolsa que se forma. Provavelmente tem alguma coisa a ver com o Jabba the Hutt, o doente de papeira mais famoso do Mundo. Mas vou mudar de conversa, apesar de uma conversa não poder ficar muito mais suculenta do que isto, com visco verde metido ao barulho.

Vamos voltar a Angola. Ao soldado Lopes. O soldado Lopes não quer saber de palavras ou árvores. Ele precisa de comer. Qualquer coisa. Depressa, porque tem de estar alerta. Ele encontra papaias, que devora depois de libertar a casca de algumas aranhas por ali se passeando. Não é especial. Não é memorável. Não há uma história de amor a começar. Há que reconhecê-lo: a papaia não tem um sabor irresistível, cativante à primeira dentada. E eis que o soldado Rocha viabiliza aquele exercício: e se as papaias soubessem a morango?

Nada mais lhe interessa. Ele só quer que seja comestível e que tenha um sabor aceitável porque mais à tardinha há meia dúzia de mulatas na tenda e torna-se chato. E, vá, porque a boa comida motiva para o combate e para andar a cortar mato na savana.

Convenhamos, se as papaias soubessem a morango, a história do soldado Lopes mudaria radicalmente. Convenhamos, também, que tal se deve ao facto de que o morango tem um sabor diferenciado, que não passaria despercebido ao soldado Lopes, tivesse-o ele encontrado nas papaias angolanas. Arrebatado pela agradável surpresa gustativa proporcionada por aquele fruto exótico, o soldado Lopes, um empreendedor, regressaria, após a guerra, a Angola para, no novo clima de paz e harmonia, fixar um negócio de importação de papaias. Negócio esse que teria uma rendibilidade muito aprazível, tanto quanto o sabor e o factor novidade deste fruto pouco habitual nas latitudes mediterrâneas.

Mais: o soldado Lopes viria a ser o presidente Lopes. Presidente do Clube Desportivo de Sernancelhe. Um apaixonado pela sua terra e pelo futebol, achou que esta seria uma boa actividade na qual empregar o tempo e o dinheiro do negócio, após o entregar nas mãos dos filhos. Fez-se acompanhar de Justino, o visionário tesoureiro que, prevendo a valorização do preço da mercadoria áurea, recomendou ao presidente Lopes que investisse em ouro. Falou-lhe em produtos estruturados e derivados, mas o presidente não é grande adepto dessas engenharias financeiras. Ele concordou com a estratégia do seu fiel tesoureiro, mas quis comprar ouro maciço. Em barras. Enfim, na verdade, ele nutre um fascínio pelos reluzentes lingotes, mas fez-se de ignorante temeroso “dessas coisas modernas” para convencer Justino a comprar mas é o tangível.

Infelizmente, nem tudo corre bem. Alguns associados do CD Sernancelhe, pouco satisfeitos com o que entenderam como uma demonstração exacerbada de riqueza - e não uma aplicação financeira – por parte do pequeno e humilde clube, rasgaram os seus cartões de sócio. Se as papaias soubessem a morango, o CD Sernancelhe teria barras de ouro em vez de sócios. Mais uma vez, os sócios não estão concentradíssimos. Mas está Justino. E o presidente, esse, só acha que os lingotes (amarelos) são muita bonitos.

Talvez a vida volte ao normal em breve. A cotação do ouro já teve uma descida histórica e podemos ter chegado ao rebentar da bolha dourada. Se assim for, Justino já devia era ter-se desfeito das barras. Mas pode ser que o ouro ainda volte a subir. A Grécia já vai com os juros a 62% no prazo bianual. Se a crise da dívida soberana ainda fizer vítimas ou continuar numa situação crescentemente explosiva, os mercados podem tornar a voltar-se para o ouro. E a estratégia do tesoureiro do CD Sernancelhe pode ter o seu final feliz. O clube encaixa forte e feio, investe em jogadores de renome e tanto reconquista os adeptos perdidos como conquista outros nunca antes conquistados. Jogadores de renome pelo menos no panorama regional. Os Jorge Febras da actualidade. O melhor jogador com bigode da actualidade. É preciso abrir o mercado do bigode. É lá que estão os restos de comida. O que quer que isso traga de bom para o CD Sernancelhe…

Claro que este foi apenas um cenário, ainda por cima já baseado nalguma ficção. O CD Sernancelhe tem, de facto, um presidente chamado Lopes. E um tesoureiro chamado Justino. E muitos outros elementos dos órgãos sociais também chamados Lopes. Fui, por curiosidade, ver os sócios da Casa do Benfica de Sernancelhe. Mais uma data de Lopes. Quem quer que tenha sido “o” Lopes, não fez a coisa por menos naquelas terras. Mas isto para dizer que os factos reais se ficam por aí. De resto, se calhar o Lopes não foi soldado nenhum na Guerra Colonial. Provavelmente, já era Sargento.

Não fecho sem antes defender que esta décalage (ou clivagem; ou fosso; ou hiato; mas décalage dá à frase toda uma dimensão de elegância que as palavras portuguesas falham em atingir; um qualquer traidor medieval até ficaria logo cheio de vontade se lhe dissessem que ele seria atirado à décalage dos crocodilos; e um gladiador, então, encher-se-ia de regozijo se fosse mandado à décalage dos leões) entre o sucesso do morango e da papaia é injusto. O morango é um pitéu, sim, mas a papaia também tem os seus atributos. E eu um dia farei café com as sementes de uma.